Agnès de Brunhoff
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Quando a música ainda é ligada às raízes, aos ritos, aos movimentos, às tradições, tudo funciona junto: os sons, o corpo, a voz, as palavras, a expressão e a emoção.
O particular prazer que a escuta dos cantos populares desperta vem deste sentimento de equilíbrio interno, da simplicidade e da harmonia coletiva que eles veiculam e desta impressão de integração profunda, de “pé no chão” que eles transmitem (“grounding” em inglês).
No ocidente, cantar se transformou cada vez mais num ato desconectado das atividades cotidianas, um acontecimento específico em um lugar específico, com movimentos corporais artificiais, diante de um público que “não sabe mais cantar”.
Trabalhar a sua voz geralmente significa se lançar no estudo do canto clássico ou permanecer com a sua voz “natural” e escolher um repertório. De qualquer forma são decisões que se baseiam, na maioria das vezes, em um pensamento fragmentado: a técnica contra o natural, a voz de cabeça contra a voz de peito… A conseqüência desta fragmentação é o aparecimento progressivo de dificuldades vocais cada vez mais sérias, que vão desde o mau funcionamento até patologias com nódulos nas cordas vocais, voz “quebrada”- sem que compreendamos o que está acontecendo, já que o funcionamento da voz é tão complexo.
Como reencontrar um funcionamento global para se trabalhar a voz do corpo? Como produzir o som com o corpo, com o nosso instrumento interior em movimento? Como recriar o movimento interior, a vibração, a atividade interna da qual ela era, antigamente, conduzida de forma natural pela vida que levávamos, da maneira pela qual a voz se inscrevia no cotidiano, nos gestos do cotidiano? Como reencontrar um instrumento são que possa em seguida se utilizar de forma proveitosa do trabalho técnico ou de todas as formas de treinamento?
Inicialmente, esquecendo tudo o que divide, deixando de lado tudo que tem origem apenas no pensamento, as idéias pré-concebidas e abstratas; e trabalhando a partir do pensamento dentro do corpo, recorrendo a uma relação completamente diferente entre o físico e o mental, que F.M.Alexander (ator australiano, que graças a um caminho completamente novo restabeleceu um corpo para a sua voz curando-a de afonias) chamou de “unidade psico-física”. A Técnica Alexander, ao estabelecer a relação cabeça-pescoço-costas que possuíamos na infância e que pouco a pouco fomos perdendo ao amontoarmo-nos em cadeiras, permite que eliminemos as tensões inúteis e que restabeleçamos a boa tensão muscular apropriada ao esforço requisitado. Esta circulação de energia chamada “Direções” possibilita que reencontremos um movimento interior sem fazê-lo, mas permitindo que ele aconteça.
Desta forma, os problemas posturais que geram uma voz limitada encontram uma solução: as pernas não estão mais tensas e bloqueadas pelo peso da imobilidade, o corpo conflituado entre “a parte de cima” e a “parte de baixo”, o diafragma aprisionado pelas costas tensas e o peso da bacia em direção ao solo. O corpo não estando mais esmagado na luta contra a gravidade pode se abrir e encontrar sua expansão dentro de uma verdadeira dinâmica. Uma boa utilização das nossas direções nos permite deixar produzir a quantidade de ar e sustentação necessários a um equilíbrio geral, o corpo todo vibra com a voz.
Em seguida, o trabalho das vogais e consoantes, para voz falada ou cantada, também é feito em conexão com o corpo sem necessidade de tensão no maxilar ou de articulações forçadas; reaprendemos a falar do interior (como bebês): as vogais e consoantes também são corporais, elas vem “das costas”.
Aplicando outro princípio da técnica Alexander, os “means whereby”, ou seja, trabalhando “os meios que nós utilizamos para fazer qualquer coisa” (e não os fins), evitamos também forçar a voz para um resultado pré-concebido: ao invés de trabalharmos de ouvido, o que é extremamente tentador dentro de uma sociedade onde escutamos o tempo todo “sons perfeitos”(através de CDs), trabalhamos o processo, o pensamento.
Não existe nenhum meio confiável de sentir ou de se escutar a própria voz. A única possibilidade é de pensarmos o caminho diante de nós, traçar linhas de conduta, um caminho a ser sempre seguido, continuamente recomeçado e repetido. E um “feedback”, um tipo de resposta virá, geralmente não de imediato, dar uma confirmação do caminho percorrido; e isto provavelmente pelo conforto e expansão sentidos, o prazer difuso, que permitem um som vibrante e livre, que pelo som ele mesmo, extremamente enganador. Tudo também depende do que estivermos prontos a escutar. Alexander não fala da “false sensory appreciation”, da não confiabilidade das nossas sensações?
Claro que existem momentos onde a voz pode guiar o corpo. E extremamente surpreendente ver estes instantes de extraordinária expansão psico-física para as notas mais difíceis, quando o cantor é “obrigado a se abrir completamente à voz. De repente estas notas acrobáticas têm um som fantástico enquanto que para as notas mais “ordinárias” o cantor se apaga de novo, se encolhe e se contrai, seu corpo se fecha como que desmobilizado, e a sua voz sofre.
Certas técnicas de canto clássico dão bases sólidas à voz. Algumas pessoas tem também um bom instinto e um bom modo de permitir ser levadas com a voz, estando o corpo bastante livre. Mas na maior parte do tempo, o stress, a competição, as posturas cada vez mais largadas em um mundo muito rápido e sempre sentado, cria um corpo inapto a cantar facilmente, com agilidade; o desconhecimento do trabalho conjunto, mental e corporal, conduz a impasses vocais. As vozes se cansam, perdem o fôlego, se estafam ou não se desenvolvem como deveriam.
A plenitude do trabalho vocal, graças à Técnica Alexander, é ainda mais impressionante por ser ela apta para todas as vozes, dos atores aos cantores ou ao simples amador, no mundo todo. Agora, é difícil falarmos mais sobre este caminho sem cairmos em uma verbalização que exclui, novamente, o corpo. Tudo o que eu poderia acrescentar é que estas reflexões sobre a voz é transponível a todos os domínios, tanto artísticos como na vida cotidiana.
A Técnica Alexander é uma aventura fabulosa que vai muito além do que seus princípios básicos deixariam entrever. É uma arte de viver. Mas não é também este o propósito da música e do canto?
Agnès de Brunhoff, professora da Técnica Alexander, compositora, cantora e professora de canto. Formada em Teatro pela Universidade de Paris 3, em canto pelo Conservatório Nacional de Arte Dramática de Paris, e em Técnica Alexander pelo North London Teachers’ Training Center.
Título original: “Un Art de Vivre: la Voix e la Technique Alexander”
Tradução: Valeria Campos.