Nelly Beri-Or

Concertista e professora revê 30 anos de sua abordagem para a execução ao piano através da Técnica Alexander.

 

De acordo com um ditado Zen: “Antes de um homem embarcar no caminho Zen ele vê Rios como Rios e Montanhas como Montanhas. Quando ele começa a seguir o caminho, para ele Rios não são mais Rios e Montanhas não mais Montanhas; porém trinta anos mais tarde Rios são Rios e Montanhas são Montanhas”. A experiência de mudanças nos padrões dos hábitos pode ser inicialmente empolgante, entretanto, não acontece sem que as acompanhem reações de confusão, espanto ou ressentimento. No entanto, conforme o tempo passa e algumas destas mudanças criam raízes em nós, começamos a contar com seus efeitos, como se as coisas sempre tivessem sido assim.

 

Em meu próprio trabalho como pianista observei que alguns aspectos da execução pianística que eu hoje em dia considero como simples e diretos não o eram há vinte ou trinta anos atrás. Algumas mudanças profundas aconteceram no modo com que me relaciono com a execução ao piano. Ocasionalmente ao ensinar, quando me confronto com um problema específico trazido a mim por um pianista mais jovem, eu percebo até que ponto eu agora conto com a ausência de dificuldade semelhante em meu próprio executar. O mesmo problema, que para mim também já foi uma vez um desafio, se tornou algo do passado. Depois que comecei a aprender a Técnica Alexander muitos detalhes técnicos da execução pianística se tornaram bem mais fáceis ou não se tornaram mais difíceis do que eram antes de eu ter começado.

 

Com os anos de trabalho com a Técnica, acontecem mudanças que erradicam os problemas de execução gerados pelo mau uso – problemas que cada um inconscientemente cria para si. Isto é verdade na nossa existência diária em geral, mas provavelmente até mesmo mais evidente no tocante a algumas habilidades altamente desenvolvidas ou técnicas artísticas. Normalmente o desenvolvimento de uma grande habilidade, tal como a necessária para a execução de alto nível de um instrumento musical, é ajudado em seu curso por vários professores. Estes professores freqüentemente ao ensinar passam adiante seus próprios modos errados de uso, os quais podem compor o mau uso resultante da falta de uma compreensão clara de como nós funcionamos como uma entidade psico-física.

 

Para desenvolvermos uma habilidade complexa nós realmente precisamos entender a íntima interação mente-corpo em nosso funcionamento total, de forma que nós não tentemos desenvolver uma habilidade focalizando demais em seus aspectos mentais em detrimento de seus aspectos físicos ou vice versa. Eu sei que muitos métodos de se executar piano, por exemplo, estão baseados em uma convicção na necessidade de que o pianista desenvolva dedos fortes. Meus próprios professores e outros com quem me encontrei acreditam firmemente nisto. Desde os primeiros anos em que eu tentava incorporar os princípios de Alexander à execução pianística eu comecei a examinar esta suposição globalmente aceita. Gradualmente, conforme minha experiência com a Técnica se aprofundava, eu comecei a entender por que esta abordagem é tão predominante entre os diversos expoentes dos diversos métodos de execução pianística.

 

Eu observei todo o ciclo de causa e efeito que reside na raiz desta suposição popular entre pianistas que estão convencidos de que para adquirir uma técnica realmente boa a pessoa deve desenvolver dedos fisicamente fortes. Sem dúvida há uma relação específica que um pianista estabelece entre o contato de seus dedos com as teclas e o som que o instrumento produz. Graus variados de ímpeto com que os movimentos de dedos do pianista pressionam as teclas resultam em uma escala variável de volume e qualidade tonal que ele obtém do piano. É interessante que, quanto mais o pianista incorre em mau uso segundo os preceitos da Técnica Alexander, mais ele limita a escala de resposta obtida do instrumento.

 

Ao tentar superar esta limitação, o pianista trabalha mais para ‘extrair’ mais do instrumento usando pura força. Assim ele aumenta seu mau uso, criando tensões e interferências crescentes no que Alexander chamou de Controle Primário. Quanto mais o mau uso se estabelece, mais o pianista sente que precisa trabalhar. Quanto mais ele trabalha, mais tensão física ele usa; mais ele se vê preso a uma experiência de lutar com a resistência das teclas, e desta forma se convence de que tem que desenvolver força nos dedos. Assim se firma um círculo vicioso de mau uso crescente e muitas dificuldades se estabelecem.

 

Entre os pianistas a quem já ensinei, uma vez veio me procurar um jovem músico muito talentoso que tinha desistido de se apresentar por causa de problemas como dores no braço e rigidez muscular que esta vigorosa abordagem tinha criado para ele. Seus professores lhe haviam falado que a única solução para ele era “passar pela barreira da dor” (o que quer que isso pudesse significar!). Este é um exemplo do círculo vicioso fechado criado ao se abordar o desenvolvimento de uma habilidade baseando-se em premissas que ignoram os fatos sobre nossa coordenação descobertos por Alexander.

 

Refletir sobre os anos que empreguei na busca -e freqüentemente esforço- para incorporar os princípios de Alexander em meu próprio trabalho como um pianista, traz recordações de descobertas “grandiosas”, no entanto incrivelmente simples; como também momentos de questionamentos e sérias dúvidas. Quando primeiro a encontrei, a Técnica de Alexander me proporcionou uma experiência extática de liberação ao tocar. Era como caminhar nas nuvens. Eu quase não podia acreditar que executar pudesse acontecer com tanta facilidade. Parecia que todos os problemas haviam sido resolvidos e todas as perguntas respondidas por esta Técnica milagrosa.

 

Àquele ponto, tudo o que eu havia aprendido de meus professores de piano sobre técnica pianística parecia, à luz do trabalho de Alexander, sem valor. Eu rejeitei o conjunto de todas as idéias sobre o que era necessário se trabalhar para se adquirir uma boa técnica de piano — “…rios não mais eram rios, e montanhas não mais eram montanhas…”. eu pensei na ocasião que bastava ser eficiente em projetar as direções de Alexander, e o restante da execução pianística cuidaria de si mesmo.

 

Como esta experiência inicial da técnica fez com que eu rejeitasse tudo que tinha aprendido previamente, “o bebê foi jogado fora com a água do banho”. Eu fui dominado por um entusiasmo absoluto pelo efeito libertador da Técnica, e inocentemente acreditei que uma mudança em meu uso bastaria para lidar com todos os desafios ao piano.

 

Continuei a treinar como professora da Técnica, e durante o primeiro ano executei e pratiquei apenas esporadicamente. Então eu comecei a perceber que a exaltação inicial estava cedendo lugar a uma indagação real de como estabelecer um modo mais permanente de executar que fosse tão livre de qualquer tensão e esforço físico como era no princípio. Eu comecei a ver que muito do que constituia meu modo de trabalhar a execução ao piano estava baseado em princípios que eram bem diferente dos ensinamentos de Alexander. Nenhum destes princípios utilizava qualquer conhecimento da integridade do uso do executante como um todo. Também ficou cada vez mais aparente que a sublime experiência de liberdade não estava arraigada em nada que já era meu, mas, transmitida momentaneamente a mim por meu professor da Técnica Alexander. Esta liberdade me era “emprestada” por alguns momentos, e só através do intermédio de suas hábeis mãos.

 

Onde estava então algo de meu? Eu sabia sobre como ‘dar direções’, contudo, quando era a hora de tocar o piano, as ‘direções’ que eu dava não pareciam ter o efeito desejado. Parecia que algo mais era necessário. Gradualmente, conforme eu retomei meu comprometimento com a execução pianística e tive que preparar repertório para apresentações, vários maus hábitos antigos começaram a vir à tona novamente. Minha confiança total na onipotência da Técnica para prover todas as soluções para as dificuldades na execução ao piano começou a ser obscurecida por sombras de dúvidas. Eu tive que executar um repertório variado e tive que esmiuçar passagens de música que requeriam muita habilidade pianística. Mas naquele momento me achei indecisa entre dois modos: o velho modo de lidar com as extensões mais difíceis de música, o qual não mais me convencia, e o novo modo… Mas o que era o novo modo? Simplesmente dar direções não estava ajudando a elucidar um texto musical complexo e me permitindo executá-lo com fluência.

 

Nesta situação eu comecei a examinar cuidadosamente todas as etapas e componentes do ato de tocar piano. A Técnica Alexander inadvertidamente me colocou no caminho da observação e busca por um modo de executar baseado em ‘não-fazer’. Tocar, afinal de contas, é um ‘fazer’ bem definido. Não há como fugir deste fato. O que se buscava era um modo diferente da maneira habitual de ‘fazer’. Eu comecei a examinar todos os aspecto da execução pianística que eu conhecia, e retornei a algumas questões básicas:

 

O que é necessário para se obter um som de uma tecla?

 

O que é o mínimo dos mínimos que precisa ser ‘feito’ para se produzir som?

 

Como eu posso manter minha consciência do Controle Primordial durante tal atividade? Destes pontos elementares eu continuei com mais e mais perguntas relativas a muitas áreas da execução pianística. Comecei a ver que não deveria haver nenhuma mudança milagrosa súbita em minha execução ao piano. Havia, no entanto, uma possibilidade de uma mudança profunda, mas ela teria que ser alcançada lentamente com muita paciência e extrema clareza do procedimento.

 

A Técnica Alexander é um processo. Seus benefícios permanentes ficam evidentes gradualmente. Este processo provou não ser um caminho tranqüilo e suave adiante. Encontrei muitos momentos de decepção quando o que eu esperava que acontecesse em minha execução não acontecia – especialmente durante apresentações. Cada vez que me deparava com tais decepções, dúvidas surgiam quanto à real eficácia dos princípios de Alexander em relação a fazer música ao piano. Mas a cada vez eu tomava mais coragem e seguia adiante em minha busca.

 

Afinal de contas, os ensinamentos de Alexander faziam mais sentido que todas as outras maneiras que eu conheci. O problema tornava-se cada vez mais óbvio – “não é fácil mudar os velhos hábitos”. E eu testemunhei a incômoda veracidade desta declaração repetidas vezes. Porém, não fazia sentido eu me distanciar do caminho que eu tinha escolhido. Tempo e persistência pareciam ser os únicos fatores que ofereciam qualquer esperança de alcançar mudanças duradouras. E o tempo e a persistência não frustraram minhas expectativas.

 

Eu continuei a aplicar os Princípios de Alexander de acordo com meu entender, o qual continuamente se modificava. Eu continuei observando e procurando entender o que eu e meus alunos realmente fazíamos em várias situações de maior exigência ao piano. O processo tornou-se de constante confrontos e tentativas de dissolver os velhos padrões persistentes de resposta ao tocar. Ir descobrindo aos poucos que ‘não fazer’ substituia gradualmente a procura habitual sobre ‘o que fazer’.

 

Por este processo gradual de ir clareando o caminho à frente, eliminando os procedimentos mecânicos inconsistentes adotados por tantos pianistas, ficou cada vez mais evidente que a atenção consciente, como empregada na Técnica Alexander, oferecia novas ferramentas para uma técnica total de se executar piano. Ela permitia que o executante reunisse vários elementos, como toda a imagem musical de uma composição e a realidade ativa da sua execução, em uma experiência completa. Vários pontos que lentamente foram se tornando claros e simples gradualmente começavam a se relacionar.

 

Com o tempo, certas maneiras que pareceram enganosos no princípio da procura se tornaram parte de minha experiência cotidiana de tocar. Sempre que eu percebia que uma destas mudanças tinha ocorrido, minha coragem e confiança em persistir neste caminho cresciam. Hoje em dia já passei a contar com alguns destes pontos, como eu mencionei mais cedo. Por exemplo: Eu sei agora sem sombra de dúvida que não é a ‘força física’ dos dedos que me ajuda a produzir um grande volume de som ao piano; sei sem dúvida que não é através de um número interminável de repetições mecânicas que alguma passagem musical será bem aprendida; também estou convencido através de experiência direta que não é o corpo que tem que superar dificuldades técnicas de execução mecanicamente. Estes, e vários outros aspectos de tocar piano, eu agora vejo sob uma nova perspectiva graças aos anos de execução pianística seguindo a abordagem da Técnica Alexander.

 

A freqüentemente irrefletida e monótona rotina de praticar deixou de ser meu modo de trabalho. Exercícios de fortalecimento dos dedos e de alongamento dos músculos não são parte de minha abordagem em relação a técnica de piano. Para mim eles são procedimentos cegos e enfadonhos, e acima de tudo muito menos eficazes do que uma abordagem que requer um constante estado de alerta e – tanto quanto for possível a cada momento – uma consciência clara de ‘como’ e ‘o que’ a pessoa está realmente fazendo ao executar ao piano. Isto inevitavelmente conduz a uma diminuição acentuada do fazer físico e encoraja um escutar mais atento.

 

E assim depois de trinta anos de trabalho em direção a uma integração do processo de Alexander aplicado à execução ao piano, não há para mim mais exaltações dramáticas, mas uma sensação estável de ida em uma direção que cada vez mais revela sua abrangência e sua veracidade a cada ano que passa. Até agora já acumulei bastante evidência de seu valor prático e estou interessada por qualquer nova compreensão com que possa me deparar ao continuar seguindo nesta direção. Agora, trinta anos depois, eu vejo, mas com uma visão nova, que ‘Rios são Rios e Montanhas são Montanhas”.

 

Nelly Ben-Or é pianista reconhecida internacionalmente que se diplomou na Técnica Alexander com Patrick Macdonald em 1963. É professora de piano e de Técnica Alexander na Guildhall School of Music and Drama em Londres. Faz gravações para a BBC e outras estações de rádio além de apresentar-se ao redor do mundo. Gravou vários discos de música de câmara e solo para piano pela Meridian Records.

 

Título original: A pianist adventure with the Alexander Technique
Extraído do Alexander Journal, n.11, spring 1991
Tradução: Rafael Reif
Revisão: Roberto Reveilleau[/vc_column_text]

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