Frank Pierce Jones
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Existem músicos — dizem até que eles eram em maior número no passado — que sentem tanta alegria em tocar quanto a que transmitem, sempre tocam bem e com facilidade, e usam-se de modo tão eficiente que seu trabalho torna-se algo natural, não dissociado da vida normal. Outros, entretanto, com o mesmo talento e o mesmo treinamento, sentem um enorme desgaste em tocar ou estudar, e acabam encurtando a carreira porque perdem o domínio das habilidades que adquiriram com o tempo. Empenham um grande esforço para solucionar problemas técnicos sem obter os resultados correspondentes, para no final descobrirem que esgotaram suas reservas de energia. Se soubessem usar a si próprios tão bem quanto usam o instrumento, tais desgastes seriam menos frequentes.
Enquanto estuda ou efetivamente toca, no entanto, a atenção do músico está voltada quase exclusivamente para o que ele está fazendo com as mãos, os pés ou os órgãos vocais, e para os sons que estes produzem. O que faz com o resto do corpo é algo que em geral ele toma pouco conhecimento. Quando está diante de um difícil problema técnico, utiliza dois procedimentos comuns: ele “esforça-se” para conseguir resolvê-lo usando toda sua habilidade; quando seus esforços provocam muita tensão e cansaço, então ele “relaxa”. Em ambos os casos está trabalhando na base da tentativa-e-êrro. Ele não tem como saber exatamente quanta tensão é necessária, ou como limitá-la ao tempo e espaço em que é desejada.
Tomemos como exemplo prático o de um contrabaixista que, para obter a força e o controle desejado para finalizar o movimento descendente do arco, habitualmente criava tanta tensão mal-direcionada no braço que não conseguia iniciar com suavidade 1o movimento ascendente. Além disso, criava uma sobrecarga correspondente em outras partes do corpo — nas costas, pescoço e pernas. Uma vez que ele concentrava a atenção nos braços e nas mãos, não percebia o que estava acontecendo no resto do corpo até que surgissem dor e cansaço.
Qualquer músico que persista nessa conduta corre o risco de obter progressivamente músculos intumescidos e de perder a liberdade de movimentos. Se ele reconhece o problema e tenta remediá-lo relaxando, corre o risco oposto. Ou ele se torna flácido e relativamente incompetente, ou, ao relaxar uma parte do corpo, acaba sobrecarregando outras partes. Conheço uma pianista que conseguia ficar com os braços tão soltos, que os dedos pareciam incrivelmente sensíveis e capazes de um movimento bem suave. Mas com isso ela desenvolveu uma extraordinária quantidade de tensão no pescoço e um peso nas costas e pernas resultando em dor. Sua atenção concentrava-se exclusivamente nos braços e nas mãos, e ela não percebia que o que fazia com o resto do corpo levava-a à exaustão.
Já foi dito muitas vezes que nossos sentidos nos enganam. Isso é especialmente verdade no que diz respeito ao sentido do movimento muscular ou cinestesia. Freqüentemente pode-se comprovar que uma pessoa está fazendo algo muito diferente do que ela pensa. Uma vez, um pianista me contou que quando tocava tinha uma sensação de fraqueza nas mãos que aumentava com determinados acordes a ponto de sentir que mal teria forças para tocar nas teclas. Descobri que justamente no momento da investida ele contraía tanto os músculos dos antebraços que as mãos quase afastavam-se das teclas. Para superar este repuxo e obter o acorde ele precisava fazer um esforço enorme. O que ele sentia era resistência nas teclas e fraqueza nas mãos. A causa, que não conseguia identificar, era uma força mal direcionada. Como nos outros exemplos apresentados, o mal uso muscular do pianista não estava restrito aos seus braços e mãos. Antes de tocar, ele “preparava” todo o corpo, acumulando tensão no pescoço, ombros e costas, de modo que a tensão nos antebraços ficava literalmente “presa” a partir de cima. A quantidade de tensão e a forma como a distribuía eram determinados por um padrão, pelo modo com que sempre utilizara os braços, tanto ao tocar o piano quanto em outras atividades, e ele não sabia que poderia haver uma forma diferente de fazê-lo.
Na maioria dos casos, estou convencido de que é inútil atacar estes problemas diretamente porque o uso da mão ou de outra parte do corpo está intimamente ligado ao uso do corpo de um modo geral. Mas se uma pessoa puder ser conscientizada dos seus movimentos musculares e aprender a distinguir seu padrão geral, ela poderá fazer mudanças e correções construtivas baseadas neste conhecimento, e não mais no método tentativa-e-êrro. De posse deste aprendizado, o músico poderá tornar-se realmente um “especialista” em si mesmo.
Esta nova abordagem à questão da mudança aconteceu graças a uma importante descoberta de F. Matthias Alexander sobre a natureza da ação reflexa. Acredito que Alexander tenha sido o primeiro especialista que, trabalhando com seres humanos em suas atividades cotidianas, foi capaz de demonstrar e provar o que ele chamou de “controle primordial” existente em cada indivíduo. Ele define o controle primordial como “um determinado uso da cabeça e do pescoço em relação ao resto do corpo”. Observando e experimentando consigo mesmo, “utilizando o mais rigoroso método científico”, segundo John Dewey, ele descobriu que o mecanismo que determina o caráter de toda ação reflexa está nos reflexos que dominam a relação da cabeça com o pescoço. Quando o controle primordial funciona como deveria, é percebido como uma força integradora que preserva a liberdade de movimento em todo o sistema de modo que a energia pode ser direcionada para o ponto em que é desejada sem desenvolver tensão neste ou em outro ponto qualquer. Um mau uso do controle primordial, por outro lado, reflete-se sempre num mau uso em algum outro lugar; isto aparece sob a forma de inabilidade, cansaço e aquilo que o inglês Wilfred Barlow, médico e aluno de Alexander, chama de “tensão muscular mal distribuída”, ou tensão em excesso numa parte do corpo acompanhada de falta de tônus em outra parte.
O biólogo americano G. E. Coghill salientou que as descobertas de Alexander estão de acordo com fatos conhecidos sobre o movimento dos animais. A importância da cabeça no movimento do animal é notória e a predominância dos reflexos entre a cabeça e o pescoço no padrão reflexo foi experimentalmente estabelecida por Rudolph Magnus e seus assistentes.
Alexander mostrou que nos seres humanos sob condições civilizadas, a relação cabeça-pescoço sofre uma interferência inconsciente, em maior ou menor grau. Sua grande contribuição para a educação foi a descoberta de um meio através do qual uma pessoa pode tornar-se consciente de sua interferência e recuperar o uso normal do controle primordial. A partir desta descoberta e das conclusões que a ela se seguiram, Alexander estabeleceu — segundo afirmou Bernard Shaw na Introdução do volume entitulado London Music — “o início de uma extensa ciência baseada nos movimentos aparentemente involuntários a que chamamos de reflexos”. John Dewey, o introdutor da obra de Alexander neste país, disse que a descoberta era “tão importante quanto qualquer princípio já descoberto nos domínios da natureza externa”.
O princípio é geral em sua aplicação, e não restrito aos problemas dos músicos. A minha experiência, entretanto, me mostrou que estes têm captado o seu significado e o colocado em prática com surpreendente rapidez. Talvez porque os músicos enquanto classe são mais conscientes do lado cinestésico da experiência. Neste artigo eu me concentrei nos problemas dos instrumentistas, mas o princípio pode ser igualmente eficaz para cantores e maestros. Sir Adrian Boult estudou com Alexander em Londres e muitos cantores têm usado seus ensinamentos. A validade para os cantores reside no fato de que quando o controle primordial funciona como deveria, ele previne a interferência nos reflexos que controlam os órgãos vocais e o mecanismo de respiração. Com relação a isso, é importante notar que Alexander fez a sua descoberta original quando procurava a causa de sua própria afonia ao recitar. O livro “The Use of the Self” (1932)2 contém um relato deste procedimento.
Ao ensinar o princípio da Técnica para um músico (ou para qualquer outra pessoa), o objetivo é despertar a consciência que o aluno deve ter de si mesmo como um todo até que possa detectar a interferência na relação cabeça-pescoço, que é o primeiro elo na cadeia de reflexos que é acionada quando a pessoa “se prepara” para fazer alguma coisa — sentar-se, apanhar o arco ou tocar a corda. Para conseguir isso, o professor ajuda o aluno a desempenhar a atividade sem a interferência habitual e a perceber através da experiência a leveza e a liberdade de movimentos que acontecem quando o controle primordial opera normalmente. Através da repetição deste tipo de experiência, o aluno desenvolve gradualmente um novo padrão de apreciação cinestésica. Com esse novo padrão ele tem o poder de, a qualquer momento, saber se está obtendo o máximo de liberdade e controle no que está fazendo. Se não estiver, aprenderá como encontrar a causa para o problema e eliminá-lo.
Como este princípio é de aplicação geral, o músico está aprendendo algo que pode usar para seu proveito em qualquer atividade. Da mesma forma, um melhor uso em suas atividades cotidianas se refletirá em sua música. O contrabaixista que mencionei no primeiro exemplo relatou como um dos primeiros resultados concretos de suas aulas, que havia cortado grama sem sentir dor nas costas, e que manteve-se tranqüilo ao pedir a alguns invasores que saíssem de sua propriedade. O mesmo tipo de controle consciente foi notado enquanto tocava e na facilidade com que aprendeu a se adaptar às exigências do instrumento.
Minha intenção nunca foi a de sugerir que um conhecimento básico do controle primordial pudesse tomar o lugar do talento natural ou eliminar a necessidade para o estudo e a prática. Mas como complemento ao aperfeiçoamento profissional, o músico descobrirá o valor inestimável desse conhecimento. Há anos que venho observando o progresso dos músicos que aprenderam a empregar essa nova abordagem para a solução dos seus problemas, e tenho testemunhado as crescentes melhoras no sentido de uma performance mais suave, com menos cansaço e com a confiança que advém do verdadeiro auto-conhecimento.
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1 Estados Unidos da América
2 “O Uso de Si Mesmo”, F. M. Alexander, Editora Martins Fontes
Frank Pierce Jones formou-se na Técnica Alexander com A. R. Alexander nos Estados Unidos. Suas pesquisas com a Técnica Alexander foram feitas no Institute of Psychological Research, na Tufts University, onde se tornou professor e conferencista em Psicologia. Seus estudos e pesquisas sobre a Técnica Alexander foram relatados em diversas publicações cientificas. Morreu em 1975, logo após terminar o livro “Body Awareness in Action – A Study of the Alexander Technique”.
Título Original: Awareness, Freedom and Muscular Control
Extraído do livro: “Body Awareness in Action – A Study of the Alexander Technique”, Frank Pierce Jones. Schocken Books Inc., New York, 1976, 1979.
Tradução: Marcia Cunha
Revisão: Roberto Reveilleau